Quatro anos depois de ter regressado ao Centro Desportivo de Fátima, para assumir a coordenação do futebol de formação, Bruno Neto passa o testemunho mas deixa um legado absolutamente inédito, plasmado na presença de iniciados, juvenis e juniores nos campeonatos nacionais, sem esquecer a consagração da equipa sénior enquanto campeã distrital da 2.ª Divisão, com um plantel recheado de jogadores ‘made in CDF’.
Entrevista Derby com Bruno Neto
Derby – A pergunta é inevitável: qual é o segredo do sucesso da formação do CD Fátima?
Bruno Neto – O segredo é o todo. Primeiro, há que realçar a retaguarda que a direção do clube sempre deu a todas as decisões que foram tomadas. Em alguns clubes, há coordenadores que decidem bem, mas depois vem um diretor e diz que tem de ser o contrário…
Aqui não! Está tudo programado entre a direção e a coordenação. Há cerca de 15 pessoas que trabalham na coordenação do Centro Desportivo, mas há duas delas que estão intimamente ligadas ao futebol de formação: Pedro Gil, diretor da entidade formadora; e Rui Nobre, vice-presidente do clube. Estão sempre presentes, a qualquer hora, a qualquer dia, conferindo um apoio e uma retaguarda fundamental.
Outro factor fundamental é que os miúdos não vêm para cá para serem campeões. Eles vêm para se formarem enquanto homens com valores. Essa é a chave da nossa filosofia. Os resultados não são prioritários e os nossos jogadores sabem desde cedo que não vale tudo para ganhar.
Conseguir filtrar as informações que nos chegam dos pais dos jogadores, também é decisivo. Por norma, aconselhamos os treinadores a nem sequer terem relação com os pais dos atletas. Isto traz-lhes paz e permite foco total no processo de treino e da própria aprendizagem.
Derby – A partir da próxima época, terão as três equipas principais da formação nos nacionais. Acreditava nisto quando assumiu o cargo?
Bruno Neto – Colocar iniciados, juvenis e juniores nas provas nacionais, foi um objetivo que assumi desde o primeiro dia neste cargo. Conseguir este objetivo em tão pouco tempo? Confesso, que se calhar não estava bem ciente disso…
Derby – Defende um modelo de formação sem a pressão dos resultados, mas acaba por vencer em todas as frentes. Este sucesso coletivo é também a prova que é possível ganhar sem perder de vista os verdadeiros princípios do desporto?
Bruno Neto – Defendo a formação de jogadores de uma forma quase separada da obrigatoriedade de atingir resultados. O que acabámos de atingir, é a prova de que as coisas funcionam. Com a organização que temos – e não é fácil encontrar uma organização como estas em qualquer clube – os jogadores gostam de estar cá e os melhores também querer vir para cá. A juntar a tudo isto, temos um naipe de treinadores muito bom, do melhor. Portanto, acabou por ser fácil alcançar estes feitos
Derby – Ter bons treinadores, também ajuda. Qual o critério para assumir o comando de uma equipa no clube?
Bruno Neto – Quanto aos treinadores e à sua competência, não entendemos como muito importante ter o Nível 4 para trabalhar na formação. Acreditamos que é muito mais importante que saibam lidar com jovens.
Ao longo dos últimos três anos, talvez tenham entrado apenas duas ou três pessoas. São escolhidos a dedo e a partir daí queremos que continuem sempre no clube. Analisamos currículos, convocamos os potenciais treinadores para uma entrevista. Se o discurso da pessoa for no sentido de nos dizer que já foi campeão de escolas ali e de infantis acolá, riscamos logo.
O que nos interessa é a vida social da pessoa e os princípios de vida. Acima de tudo, tem de se enquadrar na nossa filosofia. Não formamos campeões; formamos jogadores. Da mesma forma que nenhum treinador vem para o CD Fátima para ser campeão, mas sim para formar jovens.
Também tem de ser um treinador que seja capaz de colocar o objetivo do clube à frente das suas metas pessoais ou dos objetivos da equipa que comanda. Por exemplo, quando digo a um treinador que um ou dois jogadores da sua equipa vão jogar no escalão acima, nesse fim de semana, é essencial que esse mesmo treinador fique feliz por poder dar minutos a outros jogadores que não estejam a jogar tanto, em vez de ficar a lamentar-se por perder dois atletas para um escalão superior.
Derby – A escolha dos jogadores também obedece a critérios rigorosos, certamente.
Bruno Neto – Quando analisamos uma eventual ‘contratação’ para o clube, privilegiamos a avaliação curricular, a vida social e princípios de vida, entre outros fatores muito mais sociais do que propriamente futebolísticos. É claro que têm de ter qualidade para jogar no Centro Desportivo, mas se não souberem estar e viver de acordo com a filosofia que implementámos, dificilmente terão aqui sucesso.
Derby – Como é que um coordenador do futebol de formação observa a corrente de pais que pressionam treinadores e os próprios filhos, acabando por condicionar todo o processo de evolução?
Bruno Neto – Há uma grande fatia de pais que acreditam que os seus filhos podem vir a ser a galinha dos ovos de ouro. Quase que diria que não se enxergam e não conseguem perceber que 1 em 5000 jogadores da formação chega a um Campeonato Nacional. Já nem falo na Liga dos Campeões…
Há pais que só começam a perceber que não vai ser bem assim, quando os filhos chegam aos juvenis. Aí caem na realidade e mudam de atitude
Aliás, há um chavão que é meu e que gostava de reforçar: ‘o grande problema da formação é o resultado do próximo sábado’. É uma frase minha. Significa que, quando nos centramos no que vai ter de acontecer, em qual vai ser o resultado do sábado que vem, vamos alterar o processo de treino porque vamos pensar apenas no resultado. Os próprios pais vão estar na bancada preocupados em ganhar à força toda. Se nos conseguirmos desviar de tudo isto, cumprimos o nosso processo e ficamos mais perto do sucesso.
Derby – Foi difícil implementar esta filosofia?
Bruno Neto – Foi e continua a ser, apesar de a própria UEFA incentivar a isto mesmo. Na Associação de Futebol de Leiria, há vários anos que as competições até aos Sub-11 já não são campeonatos e os resultados não são divulgados. Em Santarém, isso foi muito difícil de alcançar.
Os clubes pressionaram tanto para continuar a haver classificações, que a associação cedeu um pouco, embora já tenha acabado também com as classificações até aos Sub-11. É verdade que ainda faz um torneio e que depois agrupa pelos resultados e vai acabar por dar ao mesmo…
Agora que a época terminou, recebemos vários convites para participar em torneios. A nossa pergunta aos clubes é muito clara: ‘qual é o modelo competitivo?’ Se forem dois grupos, onde os primeiros jogam contra os segundos e os vencedores disputam a final, a nossa resposta também é muito clara: obrigado pelo convite, mas o Fátima não está interessado. Se o torneio for em sistema de todos contra todos e os primeiros são iguais para todos, então lá estaremos com todo o gosto.
Derby – Não sentem diferença na atitude do próprio jogador do Fátima? Em termos competitivos? Até porque nem todos os clubes trabalham da mesma forma.
Bruno Neto – É um problema, de facto. Costumo debater esse tema com os treinadores. A boa educação, o fair play e a ética desportiva são características que aparentemente identificam um atleta menos agressivo, no bom sentido. Esse é o próximo desafio: encontrar estratégias para que o jovem jogador seja agressivo, mas correto, e não paranoico com o resultado. Já tenho visto miúdos de seis anos a chorar baba e ranho por perderem um jogo, apenas porque os pais queriam muito que eles ganhassem. É completamente contranatura.
Derby – O próprio selecionador nacional de Espanha, Luis Enrique, alertou recentemente para a pressão que já se exerce sobre miúdos de 6 anos…
Bruno Neto – Concordo a 100% com o Luis Enrique, mas se ele próprio olhar para o seu passado enquanto jogador, se calhar vai perceber que ele próprio não seria o melhor exemplo [gargalhada].
O diretor-geral da formação do SL Benfica defende esta ideia. Ainda agora, a propósito do Torneio da Pontinha, que será talvez o expoente máximo dos torneios de formação, ele lembrou que a grande maioria dos jovens que passam por este torneio, não chega às seleções nacionais. É uma percentagem mínima, mas a ‘campeonite’ é máxima…
Eu comecei a jogar com 13 anos e acabei com 30. Ou seja, passei 17 anos a jogar futebol. Os miúdos da atualidade, já levam esses 13 anos de futebol quando chegam aos seniores. Ora, se eu estava cansado aos 30, se calhar, estes miúdos vão cansar-se aos 20 ou mesmo aos 18… É um problema que a formação tem de repensar.
Se lhes metermos esta pressão da ‘campeonite’ aos 6 anos, eles chegam aos 18 e estão fartinhos disto… Se introduzirmos um caracter mais lúdico, talvez até aos 13, eles vão ficar melhor formados, não vão sentir o stresse da competição tão cedo e vão ter uma carreira desportiva mais duradoura.
Derby – Fim de ciclo. Sai no auge enquanto coordenador. Por algum motivo em especial?
Bruno Neto – Entendi que estava na hora de deixar este cargo e saio muito orgulho com o trabalho que fizemos em conjunto. Terminou o ciclo. A forma como saio, também revela a elevação e os valores que este clube pratica. Ou seja, a pessoa que me vai substituir, trabalhou comigo ao longo das últimas semanas, para que eu pudesse ‘passar a pasta’. Posso dizer que partilhamos as mesmas ideias a 90 por cento, pelo que acredito muito que a forma de trabalhar do clube não se vai alterar muito.
Do triplete nos nacionais ao título na Distrital. Fátima é escola de formação com nota de excelência